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A localização comercial não se define por “decreto”19.09.15

Por Heliana Comin Vargas

Professora Titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP

Tendo em vista que poucos são os especialistas que estudam o comércio e serviços na sua relação com a cidade, resolvemos indicar, brevemente, alguns dos principais equívocos existentes que tem permeado a discussão do Plano Diretor da Cidade de São Paulo e de outras tantas intervenções em nossas cidades.

Assim, destacamos os principais mitos, que tem interferido negativamente no processo de planejamento e intervenção urbanos relacionados à atividade de comércio e serviços varejistas, e que precisam ser quebrados.

1.O comércio atrai fluxo!

É importante destacar que é o fluxo que atrai o comércio. A atividade de comércio e serviços vai atrás de seus potenciais consumidores e, onde a intensidade do fluxo for significativa vai aparecer uma oferta. Isto é válido para a maioria dos comerciantes, de lojistas a ambulantes. Posteriormente, algumas aglomerações de comércio, depois de estabelecidas e consolidadas pelos fluxos, como o Brás, a Rua 25 de março, por exemplo, e mesmo as ruas especializadas, podem se tornar atratoras de fluxo. Mas, sua origem foi decorrência da existência de um fluxo anterior. Somente grandes estabelecimentos comerciais do tipo Shopping Centers são capazes de gerar fluxo por meio de estratégias negociais outras, inclusive imobiliárias.

  1. Qualquer fluxo gera qualquer comércio

A qualidade do fluxo, definido por intensidade de público versus renda, terá interferência no tipo de comércio que será gerado espontaneamente. Ou seja, a intensidade do fluxo viabiliza determinados tipos de comércio e a renda os qualifica. A faixa etária também pode ser um agente de qualificação do fluxo. É esta qualificação do fluxo que determina os tipos de comércio e serviços para cada lugar na cidade, como os populares no centro da cidade e os de elite na rua Oscar Freire, por exemplo. Também é este tipo de fluxo que cria, como no entorno da Avenida Paulista, serviços de alimentação variados com restaurantes e bares para alimentar um fluxo de empregados terciários durante o horário de almoço. Como estes, poderíamos citar muitos outros exemplos. A dinâmica da cidade e as atividades que vão se instalando criam um efeito multiplicador que, de forma complexa, definem a especificidade e a vitalidade de cada área urbana. Intervenções urbanas que não consideram estas especificidades incorrem no risco de interferir negativamente nesta dinâmica.

  1. Comércio e serviços são tudo a mesma coisa.

Esse é um outro grande equívoco. Os serviços têm uma característica de serem realizados por pessoas exigindo um certo desempenho de quem os pratica, como por exemplo, um serviço de cabelereiro ou um serviço de restaurante. Estes podem estar localizados em lugares não tão visíveis ou em andares superiores, pois o consumidor irá atrás de quem faz bem este serviço. É a qualidade do prestador de serviço que mantém o seu fluxo como uma espécie de fidelização. Já o comércio vive da venda de produtos padronizados oferecidos pelo setor industrial podendo ser adquirido em vários locais (embora a qualidade do atendimento possa fazer alguma diferença). Por isso, o comércio precisa estar mais visível e no térreo (observem a dificuldade dos comércios de se manterem em sobrelojas). Já os serviços podem se verticalizar, como os consultórios médicos por exemplo. Este equívoco, a nosso ver, contribuiu para a deterioração do centro da cidade de São Paulo quando foram criados os extensos e ininterruptos calçadões na década de 1970 (com tendência de retorno na atualidade). O comércio do térreo mudou de público e se popularizou e os serviços médicos e advocatícios, dentre outros, nos andares superiores, perderam seu público de maior renda e se esvaziaram, sendo substituídos por atividades consideradas “menos nobres”. A compreensão destas diferenças entre as diversas categorias de comércio e serviços é fundamental para se pensar as intervenções urbanas na cidade, tema este considerado um tabu na formação do arquiteto e urbanista.

  1. A atividade comercial e de serviços é homogênea

Outro grande mito. A diversidade das atividades de comércio e serviços responde, diferentemente, na sua relação com a cidade, ou seja, tem demandas locacionais e arquitetônicas também diversas. Esta diversidade inclui condicionantes que variam quanto ao tipo de fluxo (renda, meio de transporte, faixa etária); quando à frequência da compra (diária, eventual, rara); quando ao tipo de compra (planejada, comparada, por impulso, conveniência); quando ao tipo de produto (perecível, durável, grande ou pequeno); quanto à motivação do consumidor (compras obrigatórias ou hedônicas); quanto ao tipo de agente varejista (loja independente, franquia, grandes lojas, shopping centers etc.). Todas elas devendo ser pensadas de acordo com a cidade em que se inserem tendo em vista os fluxos existentes (intensidade e renda), a mobilidade urbana (meios de transportes e sistemas viários); os usos e arquiteturas pré-existentes (polos geradores de fluxo, e propriedade fundiária) e a gestão urbana (qualificação do espaço público, segurança e legislação). Complexo não? Um simples o aspecto a mencionar é que para alguns tipos de comércio, como as compras por impulso, a proximidade da vitrina com o pedestre é fundamental (edificações sem recuos). Já para outros comércios e serviços, a necessidade de estacionamento é extremamente importante, como acontece na Avenida Rebouças ou Pacaembu, por exemplo. Mesmo a determinação das áreas de influência de cada estabelecimento, segundo modelos clássicos de definição, também precisam ser relativizadas, considerando o comportamento dos cidadãos diante do tipo de cidade em que vivem. A (I)mobilidade urbana de nossas cidades tem promovido mudanças na forma como seus moradores realizam suas compras de produtos de uso cotidiano, antes realizados nas proximidades da residência e hoje no percurso de volta para casa. Assim, uma avaliação clássica de área de influência que considera o potencial de compra de uma área e aponta a oferta existente como deficitária, ao não levar em conta as especificidades locais de cada região ou cidade, incorrerá em equívocos de análise. Outro equívoco é transformar esta diferença de potencial de compra não atendido em área bruta locável (ABL). Nem sempre há uma relação direta entre rentabilidade e área locável, principalmente para o comércio independente, não planejado. Isto sem falar é claro das compras online e da sua relação com a loja física. (tema para discussões mais amplas).

 

5.O Comércio e os serviços respondem por fachadas ativas

E eu diria, desde que fiquem abertas ou iluminadas o tempo todo! A grande importância das fachadas ativas refere-se à segurança dos usuários das cidades. Mas, lembramos que é a presença de pessoas que auxilia na segurança urbana (olhos para a cidade) e como já mencionado é um fluxo que viabiliza o surgimento e a manutenção do comércio e serviços. Considerando que o comércio, na sua maioria fecha às 18 horas, (alguns às 20 horas) a fachada ativa se encerra neste mesmo horário, a menos que haja fluxo. Assim, mais do que fachadas comerciais no térreo que se cerram por volta das 18 horas, é a sensação de co-presença que cria a sensação de segurança e intimida os transgressores da lei. Fachadas iluminadas contribuem para isso, (não exclusivamente comerciais e de serviços) além de manter a divulgação de seus produtos por 24 horas. Se houver fluxo que o viabilize, o comércio e serviços manter-se-ão ativos em períodos mais longos, tendo em vista que as restrições ao horário de abertura dos estabelecimentos são, atualmente, mais flexíveis. As tentativas de obrigatoriedade de instalação de comércio e serviços no térreo como ocorrido em Curitiba, mostra claramente os limites da tentativa de se impor por decreto a localização do uso comercial e de serviços. Fato análogo tem acontecido com a tentativa de implantação de ruas “24 horas” ou de “polos gastronômicos”, a maioria “por decreto”. Mesmo numa cidade como São Paulo, com uma vida 24 horas, as lojas do supermercado Pão de açúcar restringiram recentemente seu horário de abertura, antes 24 horas.

 

6.O percurso do transporte coletivo atrai o comércio e os serviços

O que atrai o comércio é o fluxo gerado nos terminais e estações do transporte coletivo mas não em todo o seu percurso, pois não há a circulação de pedestres no trajeto entre as paradas, seja de superfície ou subterrâneo. A Atração restringe-se às suas paradas ou terminais, proporcionalmente ao número de usuários (fluxo). Logicamente que estações de metrô, interna ou externamente, são sempre pontos de interesse dos comerciantes e ambulantes tendo em vista o grande fluxo. O que não acontece necessariamente nos pontos de paradas dos ônibus, restando para os terminais, neste caso, a grande oportunidade, embora com as atividades sendo criadas, também, de acordo com a renda da população envolvida. (É notória a presença de comércio de alimentação como açougues, mercearias etc, junto à terminais de ônibus). Já o transporte motorizado individual, desde que haja a possibilidade de estacionamento na rua ou no lote, funciona como indutor do comércio no seu percurso, inclusive criando os strips centers como acontece nos EUA, ou em áreas da cidade onde o fluxo de veículos é intenso. O fluxo de pedestres também tem esta habilidade, embora mais voltados às compras por impulso cujos produtos comprados são facilmente transportadas. Será o adensamento da área nas proximidades dos corredores que auxiliará o surgimento do comércio. No entanto, é bom lembrar que a grande quantidade de oferta varejista, acima do potencial de compra da população, irá no sentido inverso dos efeitos esperados com a presença de fachadas ativas, pois muitas estarão cerradas e vazias! O exemplo do Bairro de Moema não serve como referência para generalizações, pois é um local de altíssima densidade e renda, além de apresentar até o momento padrões de mobilidade reduzidos. Lembrando que o comércio e serviços estão alojados nas antigas residências que permaneceram fora do interesse imobiliário.

7.As atividades de comércio e serviços não causam incômodo.

Tendo em vista a enorme gama de atividades envolvida no setor terciário, algumas delas são consideradas incômodas pela população, principalmente se próximas ao uso residencial. Atividades como bares e restaurantes e atividades de lazer noturno embora mantenham o fluxo por mais tempo, prejudicam o silêncio almejado pelos moradores. Temos claros exemplos disto na cidade, onde destacamos a Vila Madalena e mesmo os baladões e batidões que acontecem por toda a cidade. A proximidade de grandes estabelecimentos como super e hipermercados também oferece uma perturbação noturna no seu processo de carga e descarga e no funcionamento ininterrupto de suas máquinas de refrigeração, por exemplo. Isto conduz ao fato de que os usos comerciais no térreo de edifícios de apartamentos nem sempre são benvindos, principalmente para a classe de maior renda que tem mais possibilidades de escolha. O empresário Artacho Jurado já percebera este inconveniente quando começara a produzir apartamentos de luxo em Higienópolis na década de 1950, pois havia produzido outros na área central com comércio no térreo, logicamente para outra classe de renda. Assim, no caso de Higienópolis criou algumas alternativas para a redução do custo do condomínio como os salões de festa que eram alugados para eventos externos ao prédio. Mas o foco era o morador do edifício e não a cidade.Morar em ruas que se caracterizam como corredores viários também não é um desejo dos moradores, pois mesmo durante o período noturno, quando o fluxo é menor há sempre o incômodo dos ônibus e caminhões circulando em meio a um momento de silêncio maior. Esta também é a grande discussão que se estabelece para se evitar a criação de corredores (ainda que de automóveis) em áreas exclusivamente residências como as antigas Z1 da Lei te 1972, ou as ZERs na legislação atual.

Isto posto, diante dos mitos existentes sobre a temática comércio e cidade, devido fundamentalmente pela carência de estudos nesta área do conhecimento, fizeram-se aqui necessários estes breves comentários apenas para atentar para o fato de que as intervenções na cidade devem ser mais cuidadosa e competentemente pensadas.

Para saber mais sobre este tema ver:

VARGAS, Heliana Comin. Espaço Terciário. O lugar a Arquitetura e a Imagem do Comércio. São Paulo: SENAC, 2001.

VARGAS, Heliana Comin. Comércio: Localização estratégica ou estratégia na localização. Tese de doutorado. São Paulo: FAUUSP, 1992.